De posse de um barco pardo, de velas
armado, sem conhecer a direção do vento;
partiu em seu veleiro solitário,
guardado de si e perdido do tempo dos homens todos.
Por um caminho feito de ondas que
não marcavam a direção e sumiam e voltavam
ele deslizava sobre o velho e
pardo barco levado pelo vento forte, ou fraco;
uma mão no timão, outra na corda
da vela, que ele apertava com força e brutalidade
mas era capaz de sentir os sutis
detalhes das linhas finas que compunham a tal corda.
Ele não podia controlar o caminho
ou sequer conhecer para onde deslizava,
e em seu profundo silêncio de
solidão o vento eram suas palavras
guiadas rumo à eternidade de um
mundo distante e desconhecido dos homens todos.
Ele não buscava aventura ou um
lugar para ancorar, ele apenas guiava o vento em suas palavras
que não cabiam em seu coração e acendiam
sua mente em direção ao mundo novo
e que mundo seria, ele não sabia e
não se preocupava em saber pois só conhecia o mundo velho
conhecido dos homens todos que
achavam que conheciam os mundos todos.
Ele não buscava o amor porque só tinha
o velho veleiro pardo pequeno demais para dois
e nenhum amor velaria ao seu lado
sob o julgo de um vento que sopraria eternamente.
Ele não buscava o saber porque
bastava ouvir o vento cheio de suas próprias palavras sozinhas
com força para girar o mundo e
inundar suas sombras, mas não ouvidas pelos homens todos.
Ele sabia que não buscava nada, apenas
era empurrado pelo vento e deslizava sobre as águas
rumo ao destino distante, que de
tão distante, não era destino, nem era sequer real.
Seu coração doía e ele sabia que
ia doer, mas as mãos precisavam estar firmes no timão e na corda e era preciso
a força do coração doído para manter-se agarrado ao caminho traçado por águas e
alimentado pelo vento do qual ele não caía pela força de seu coração endurecido
que enrijecia sua mão.
Não havia esperança ou medo ou
segredo guardado num homem de tantas palavras quanto o vento.
Não havia pecado ou pureza,
desejo ou satisfação. Havia um caminho de águas e um veleiro pardo capaz de
ouvir o vento.
Ele não temia os homens todos
também não temia o mar, mas não seria deles ou como eles
sua mágoa era o seu sorriso e sua
paz a turbulência de um furacão
e sua certeza, ah a sua certeza! Era
a falta de um mapa que ele não levou porque acreditava em um destino que não
existia.
Ao longo da estrada do mar seus
ouvidos e velas treinados a ouvir o vento
foram laçados pelo canto suave e
quase silencioso que cortou o caminho das águas,
vindo delas, talvez para elas e
não para ele, porque a ele o canto não foi oferecido
mas o indefinível vento decidiu
repousar e ouvir o canto escondido das águas ou nelas
porque era uma doçura saída do
salgado mar, não para se escutar, só era.
O caminho das águas repousou e se
tornou uma imensa lagoa que emitia o brilho da paz,
mas paz é turbulência de furacão
e se a superfície se acalma as profundezas fervem
e disso sabia o homem sobre o veleiro,
mesmo que não o soubessem os homens todos
mas ele nada podia diante da
imensidão de calma e paz sobre um canto quase não ouvido
que ele não esperou, apenas
esteve ali porque era ali que estava e não em outro lugar com os homens todos.
E com o vento parado ele
silenciou sua mente e afrouxou suas mãos cansadas de velejar
e a dor deu uma trégua e seu
coração pode se acalmar flutuando imóvel sobre o mar
parado, de sorriso no rosto, mas
sem ser preciso sorrir, vento silenciado e alma em evidência.
Ele esteve ali até que o canto
foi ouvido pelo seu silêncio doce como o mar salgado
e quem possuía esse canto era uma
bela sereia que emergiu tímida e escondida
com medo do homem porque como sereia
sabia e temia os homens todos
já que todos a pintaram como um monstro
que os destruiria mesmo sem saber que ela existia
mas de pensarem que ela não se
prenderia em suas jaulas eles a temiam como um monstro
cuja liberdade feria seus arpões
de caça afiados escondidos nos cascos dos barcos para matar os seres livres.
Ela temia os homens todos e
acreditava que ele era um deles
e isso ele não estranharia porque
já também achou que o fosse e até temeu a si mesmo
como temia os homens todos e sua
vida de imagens não vistas, palavras não ditas, amores não amados, verdades
mentirosas, prazeres que feriam, posses que escravizavam e tudo mais que os
homens todos chamavam de vida, mas por estarem sempre buscando viver ele achou
que talvez nunca tivessem vivido.
Com o rosto deitado sob as águas
paradas só se podia ver parte da face e metade do olhar da sereia.
E com seu silêncio contemplativo
o canto era ouvido em um lugar dentro dele que não eram nas velas de seu
veleiro pardo.
E ele olhou por um tempo e não
disse quase nada porque talvez o vento viesse e ele fosse levado.
Mas não era necessário desejar o
vento, pois diferente dos homens todos ele não a temia
porque ela sorria e ali ao seu
lado nada fazia apenas olhava imersa nas águas calmas
de uma paz que escondia um
furacão que talvez nunca soprasse,
pois se soprasse assustaria os
homens todos e eles fugiriam e urrariam de ódio e pavor
mas no veleiro não havia temor,
apenas o tempo que não passava por não fazer mais sentido
e o homem que velejava sem rumo
até o rumo não velejado sob o imerso olhar da sereia
escondida nas águas calmas que a
revelavam, mais por estar escondida do que por se revelar.
E o que ele queria? Possuí-la? Velejar?
Não, ele só estava ali porque era ali onde ele estava
e não com os homens todos e
talvez só por isso fosse ali onde ela estava e não fugindo dos homens todos.
Ah os homens todos, tão poucos em
sua multidão que talvez não sejam nada e nunca percebam o olhar escondido de
uma sereia já que turvam as águas com seus arpões. Talvez nunca escutem o canto
já que ela canta em silêncio não querendo ser ouvida. Ah tolos homens todos
silenciados por seu ruído constante e suas paredes que param o vento e assim
nunca são levados por ele e não chegam a lugar algum, mas sempre querem chegar.
E ficam todos entre si os homens todos, sozinhos como todos os homens todos.
Sim. Era o que ela diria se ele
perguntasse se poderia mergulhar, mas ele não perguntaria
porque não pensara em pular ao
mar em nenhum momento de sua jornada
que não era uma jornada, ele
apenas estava sobre o veleiro de mãos firmes e imóvel
e o que segue não somos nós, o
que nos leva é onde escolhemos pisar e ele sabia
e sabia que não sabiam os homens
todos e pisou em um veleiro pequeno sem a ninguém convidar
talvez a sereia quisesse que ele
estivesse ali ao seu lado dentro das águas calmas que escondiam o furacão
ou talvez ela temesse ser
convidada para subir ao barco, onde ela não caberia e teria que segurar a corda
áspera das velas com suas mãos acostumadas à doçura das águas salgadas do
imenso mar.
Mas ele não convidou, seu barco
era feito apenas para um e apenas um cabia
todo o resto existia ao vento e
ele era capaz de perceber que não tinha nada
apenas o vento de palavras que
passava por ele e nunca ficava então nem isso tinha
mas estava sempre ali, onde o
vento passava porque para ele só existia aquele lugar e aquele momento
e aquela sereia que agora existia
e ele esperava o furacão que o arremessaria para longe
e todo o seu veleiro quebraria já
que a paz vem embalada na tormenta do vento sem fim
vento que torna todos os caminhos
pequenos e encosta tudo no desconhecido que não vemos.
O veleiro sabia a esse homem
muitas coisas por ser um veleiro só
só levado pelo vento, só para um,
porque o vento é tudo e ao mesmo tempo nada
pois carrega tudo o que não fica
e deixa tudo o que não pode levar e nada é
pois só é o que vai, porque não é
nada e o que fica, se fica, não foi e não é.
O tempo da sereia fora da água
era muito pequeno e ele apenas via água parada
e pensava nela mais do que ela
existia e ele, é claro, sabia
que seus pensamentos eram a maior
verdade que tinha
mesmo que existindo apenas sobre
seu veleiro de um homem só
e que seriam levados com o vento
quando ele voltasse a soprar cheio de palavras
nas velas pintadas de poesia sem
cor alguma já que não precisavam de nada
pois mesmo sem existir, existiam,
assim como poesia, que mesmo sem ser dita, poesa.
E todo o intervalo de ter visto a
sereia até o momento em que a veria novamente
ou talvez não visse já que as
águas eram imensas ao alcance de seus olhos de vela cansada,
mas ele sabia que o intervalo
seria marcado por seus pensamentos nela,
no seu sorriso escondido sob as
salgadas águas do imenso mar e seu canto
não cantado que invadiu seu
coração e rasgou o silêncio de seu esconderijo em mar aberto
e acendeu seu furacão e ele entendeu
então que o furacão não viria do vento sobre o mar
porque já estava lá, e era ele, o
furacão de todos os ventos soprados ou não
o homem nenhum, jogado fora pelos
homens todos que não sabiam soprar ou cheirar o vento
e se escondiam em suas cavernas
quadradas de vento falso e gelado
com o cheiro falso que mentia ser
agradável ao nariz dos homens todos
e todos os homens todos fingiam
amar acorrentados aos seus fingimentos
com invisíveis correntes de ideias
que os prendiam em tudo que não sabiam entender.
Mas não sabiam e não viam as
correntes os homens todos
porque o homem ao mar no veleiro
pardo solitário para um homem só
via presos todos os homens todos
sob o julgo do seu medo do canto da sereia
e via também presas todas
as sereias todas, presas ao mar
com medo de serem presas pelos
homens todos
eles na terra elas no mar, presos
todos pelo medo de se prender a correntes e arpões
e ele não precisou ter visto todos
os homens todos nem todas as sereias todas
bastou ser um homem e ouvir o
canto da sereia em seu coração e tudo lhe foi explicado
pelo vento que não soprava e explicou
com o silêncio de palavra alguma
e entendeu sem ter compreendido o
próprio entendimento
a sereia não emergiu o homem não
mergulhou e o pequeno veleiro pardo
os separou em suas existências,
uma na água e um fora dela
já que a água não era capaz de
engolir o furacão que não seria mais furacão se engolido pelo mar.
E não seria mais mar se soprado
pelo furacão e isso fez o homem entender
que ele não desceria às águas e a
sereia não subiria ao veleiro
e mesmo porque nunca houve convite
apenas o vento de palavras do homem
que ele viu assustar a sereia que
só apareceu com o vento silenciado
porque sabia que o vento trazia
não só o veleiro pardo mas também os homens todos
que turvavam as águas com seus
arpões e cegavam o mar e o vento.
As mãos da sereia não tocaram as
mãos do homem, seus corpos não se conheceram
suas bocas não saborearam-se,
seus olhos não viram apenas uns aos outros
seu cheiro não foi misturado até ser
um só
ela não o molhou e ele não soprou
palavras em seus ouvidos
ela não cantou o canto da sereia que o enfeitiçaria a mergulhar no profundo mar
e ele não entoou as palavras de
vento que a fariam subir no pequeno veleiro pardo
e não quiseram ser um só, ela era
da água e ele do vento
não contaram seus segredos, já
que suas almas estavam guardadas em suas almas desconhecidas
não se apaixonaram, o mar e o
vento significavam mais do que seus corações
não caminharam de mãos dadas já
que não sabiam caminhar sobre as águas
não se abraçaram, não dormiram um
ao lado do outro esperando o vento voltar e levar o veleiro
a sereia não o viu partir com a
esperança de que voltaria
ele não se lançou ao vento
sabendo que voltaria para onde nunca soube onde era, mas ela estaria lá
não foram um para o outro, porque
um do outro jamais seriam
ele era do vento, ela era do mar.
Ele era o furacão, ela o oceano profundo. Ele possuía as velas de poesia que
eram de coisa alguma e ela possuía o canto da sereia que nunca havia cantado
para não enfeitiçar ninguém.
Ela estava cuidada dentro de suas
águas que a embalavam
e ele seguia estrelas que jamais
poderia alcançar.
E ali estavam, só porque era o
lugar que estavam aquela hora
e não ouve amor, não aprenderam a
amar
era água demais
era vento demais
ainda que estivessem parados.
Poderia ter sido amor ele pensou
ou talvez ela tenha pensado
no pequeno momento em que foram
corajosos o suficiente para se olhar
e não para onde olhavam os homens
e sereias todas
mas ele temeu se afundar nas
águas quando percebeu que ela o queria no mar
poderia ter sido amor se ele
mergulhasse ou ela subisse mas era uma missão perdida
para uma sereia e um homem sobre
um veleiro pardo de vento parado
e foi um veleiro que os separou
o veleiro que leva o homem ao
destino do vento que não possui destino algum
e que por ventar sereno não o
derrubou nas águas quando a sereia se permitiu estar lá
e agora ela já nadava para longe
com medo dele ter um arpão
arpão que ele nunca soube
manusear e nunca também disse que não tinha
mas ele não a pediu para voltar
ou sequer pediu ao vento que o levasse até ela,
a viu partir olhando para trás e
desejou que o vento o tirasse dali sem desejar nada
e ela sabia que todo o vento talvez
tivesse as palavras dele
e ele sabia que todo o oceano
teria o cheiro dela e a temperatura de um mergulho que ele não teve coragem de
dar e resolveria pensar que ela não teve coragem de subir, mas não era mais
bobo a esse ponto, o veleiro havia feito dele um homem bom em pensar
poderia ter sido amor se o mar e
o vento fossem um só
mas eram mar e vento abraçados e
separados na imensidão de cada um
e sabiam que sereia e homem sobre
o veleiro, separados pelo ser que eram
mereceram um lugar ao lado do
outro
sem tempo marcado, sem mapa ou
sem migalhas para seguir
e a sereia partir sem precisar ir
pois todo o mar era seu
e o homem convidava o vento a
ensiná-lo a partir
já que a dor das mãos travadas às
cordas da vela era menor que a dor de um furacão guardado no peito
ele não perguntou se poderia
mergulhar, ela não disse que sim
ele não perguntou se ela queria subir
ao barco, ela não disse que não
e essa história não foi feita do
encontro entre os dois
mas das velas de poesia feitas de
nada que levaram o homem até ali e o levariam embora depois
já que ele nunca teve destino e
não o teria
porque seu único sonho era amar
em paz, mas a paz era o seu furacão que o levaria ao mundo inteiro
ele não ouviu o canto que o enfeitiçaria
e o tornaria vento mar
e ele não soprou o vento que a
faria cantar
porque ele precisava dizer aos
homens todos que existe um mar com o canto de uma sereia que irá plantar em seus
corações a felicidade profunda
e sonhar que todos os homens
todos o ouviriam
mesmo que seu coração fosse o único
sem o canto da sereia
e montado em seu veleiro pardo
ele viu o vento voltar enquanto a sereia nadava sem rumo
não houve amor
houve vento e mar
vela de veleiro pardo e canto
silencioso de sereia
mas poderia ter havido
porque essa história é feita das
velas de poesia do veleiro pardo que não são feitas de nada e poderia ser outra
história
mas eles só estavam ali
naquele momento
em que o mar sentiu a paz de um
vento que não soprava
o veleiro pardo talvez vague até
o fim de todos os dias
e a sereia talvez nade sem nunca
cantar e enfeitiçar
e essa história talvez nunca seja
mais que uma história do vento e do mar
de um veleiro pardo e uma sereia
que ensinaram ao homem das
palavras de vento
o que poderia ter sido amar...