sábado, 25 de julho de 2020

Ilê Okan


Resolvi fazer um poema em prosa para uma amiga de inimagináveis histórias e alma cheia de poesia. Os versos vão ficar amontoados porque ela era tão acelerada que nos levava em suas histórias e nos enchia com sua vida animada. Aquela que há muitos anos atrás viu um rapaz sentado no chão, planejando um filme e ofereceu ajuda, porque ela era assim, e daquele dia em diante ela fez parte da minha vida. Sua casa, seu ‘ilê okan’ – não sei se estou usando corretamente a expressão – era de todos nós, nos sentíamos aconchegados lá. O portão em que ela ficou pendurada e não levou os figurinos... a casa onde ouvi inúmeras de suas histórias inacreditáveis. Porque ela era assim, de aventuras diárias, e tudo acontecia com ela. Aquela linda mulher negra, amiga de todos nós, que parecia vinte anos mais jovem. Aquele sorriso que estava lá mesmo nos dias mais difíceis. Quantas vezes ela elogiou meus roteiros (mesmo sem ter lido). A quantos amigos me apresentou, porque o que era dela era de todos nós. Aquela mulher que deve ter sido a mãe mais doida do mundo e também uma das melhores, e nos deixou na companhia de uma pessoa incrível que é o seu filho. Suas roupas coloridas, seus batons extravagantes, sua risada inesquecível. E ela ouvia música e cantava, e como amava isso. Desafinava às vezes, mas não tinha a menor importância, porque era ela e ela era assim, nos importava estar ao seu lado. Aquela que recebia todos os nossos amigos como se fossem amigos dela e eles se tornavam. Ela fez o figurino da minha primeira tentativa de filme, e eu não tinha dinheiro para pagar, ela fez assim mesmo. Ela fez o primeiro figurino de minha escola de teatro e recebeu quase nada, porque tínhamos muito pouco; porque ela era assim. Ela amava o Rio, amava seus amigos, seu filho, a arte; amava viver e viveu intensamente todos os segundos de sua vida. Aquela mulher que, quando já não estava conseguindo se levantar do sofá, por dores, me recebeu em sua casa com um enorme sorriso e satisfação. O seu legado é o seu filho, as memórias que deixa em nós, suas milhares de fotos sorrindo... e sua legião de amigos de um tamanho imenso, e cabíamos todos em seu coração. E quase todos já invadiram sua casa para um churrasco inesperado e ela nunca nos fez voltar, porque ela era assim. Seu incenso pra se misturar com o cheiro do cigarro... Soraia Valéria Ramos, ou melhor Suraya, como ela gostava de ser chamada. Um dos maiores corações que já conheci em minha vida, um pedaço da vida de todos nós... porque ela era assim, incrível. Ontem, 24 de julho de 2020 ela teve que partir... o mundo está diferente, o horizonte está mais perto, os sons estão mais devagar, as palavras mudaram o sabor; as homenagens são muitas e o silêncio profundo. Cantemos em reverência à sua alegria, porque ela era assim, parte da nossa alegria. Vá em paz amiga, obrigado por todos esses anos.

Um grande abraço de seu eterno amigo,

Trajano Amaral.