sábado, 18 de dezembro de 2010

CAIXINHA DE NATAL

Bem no final daquela rua, onde não havia quase nada além de muito silêncio e pessoas sem sorrisos. Às vezes brigavam e quebravam o silêncio. Às vezes não. Quase sempre. Ao lado da entrada, esquecida, havia uma caixinha de natal que fora posta ali há muitos anos por um senhor que morou na vila; havia morrido e poucas pessoas ali o tinham conhecido. A menina que não gosta de natal aprendeu a não gostar por olhar todos os anos a caixinha e não encontrar nada nela. Ela sempre acreditou que o papai Noel voltava do portão e nunca teve coragem de entrar. Ela cresceu assim, sem renas ou trenó, entrando e saindo da vila. Trabalhou, estudou, trabalhou mais, estudou mais ainda, foi se tornando mulher, aprendendo sobre o mundo, fazendo amigos, descobrindo verdades e mentiras, construindo segredos e histórias.

Os dias passavam, os anos corriam. A caixinha ficava velha e cada vez mais esquecida. Ninguém nunca a abriu, ninguém nunca colocou nada lá. Apenas um menino mal educado, que agora não é mais um menino, escreveu nela com corretivo “vai tomar no cu”. A menina que não gostava de natal também nunca gostou do que o menino escreveu lá, mas ela não tinha motivos para apagar  ou querer concertar a caixinha, já que ela não significava nada, apenas mostrava o quanto estavam todos esquecidos e perdidos naquele canto pequeno e aconchegante do mundo. Ela olhou a frase numa tarde em que o sol se escondia devagar, em que gatos famintos miavam no vizinho e cachorros abandonados roubavam as sacolas de lixo. A frase a intrigou. Por que alguém escreveria isto? Se perguntou a menina. Por que usar as palavras de forma tão mal usada? Qual o estímulo para fazer desse jeito? Não havia respostas, entendimento ou sequer empatia. Não houve também a vontade de limpar.

Em casa, à noite, a menina que não gostava de natal ficou se lembrando das palavras escritas na caixa. Agora já não significavam mais nada. Eram apenas letras enfileiradas que poderiam ter todos os significados do mundo. As letras a acompanharam enquanto descansava e depois, bem mais tarde, entraram com ela no banho. A menina escreveu letras desligadas e depois palavras soltas nas paredes do banheiro, onde a água quente evaporava e criava uma camada de vapor condensado. Em pouquíssimo tempo elas escorriam e sumiam. Durante a noite sua cabeça escutou palavras. Seu coração desejou palavras. Durante a noite não aconteceu nenhum sonho. O barulho das brigas na casa ao lado não a atrapalharam dormir, ela não estava com sono. Ela não tinha desejos, apenas uma vontade de palavras que ficava esquecida mas não se calava dentro dela. Nesta noite, a menina que não gostava de natal não conseguiria dormir, foi o que pensou por várias horas. Quando percebeu já era de manhã, o sol invadia sua janela e incomodava os seus olhos. Ela havia perdido a hora de ir para o trabalho. Sabia que não poderia chegar tão atrasada e que deveria criar uma desculpa. Tentou marcar médico, tentou criar alguma coisa, ia falar que o ônibus quebrou, mas se lembrou que ia andando. Preocupada e não conseguindo pensar em nada, se sentou na sala, de frente para um calendário velho pendurado na parede. Viu então que era dia 24 de dezembro e que estava de folga. Sorriu aliviada por saber que não iria perder o emprego. Percebeu que este foi o seu primeiro sorriso trazido pelo natal.

Saiu pela vila. Olhou os visinhos. Estavam todos do mesmo jeito. Quietos ou resmungando. Na sua casa também era assim. Um clima cinza e esfumaçado que parecia tomar todo o local. Não haveria festas ou comemorações por ali. A menina que não gostava de natal e não era mais menina cresceu no meio dessa fumaça sem olhar para fora ou para dentro e sem buscar novas histórias. Naquele dia as palavras a incomodavam. Não gritavam no seu ouvido, mas ficavam por ali, o tempo todo. Ao seu redor. Tocando seu rosto, tocando seus olhos, tocando suas percepções. Ela percebeu o clima lento em que uma mulher fazia a faxina da casa, esfregando o chão com uma vassoura molhada, observando apenas a sujeira que saía. Do outro lado o vizinho pregava uma placa de madeira próximo ao muro; seus movimentos remetiam apenas às batidas no prego. Uma garota sentada em uma cadeira de praia velha estava lendo; seus olhos se concentravam mais em seus pés do que no livro. A única música que se escutava era um funk mal feito que vinha de algum lugar não identificado da rua. Pela janela de uma casa era possível ver três pessoas assistindo TV. Cada uma em um sofá. Passava um daqueles programas chatos de início de tarde e nenhum deles olhava a TV, na verdade não olhavam lugar algum. O tempo passava indeciso por ali, sem saber se ficava ou se ia. Mas ao olhar a caixinha de natal rabiscada ela entendeu que ela ficava, o tempo nunca se fora, sempre ficou à espera...

Já em casa, a menina que não gostava de natal reparou que o sol começava a sumir. E quanto mais a luz diminuía mais as palavras se tornavam sólidas diante dos seus olhos, mesmo que ela não as reconhecesse. Parecia que estavam dentro dela, talvez por isto tenha passado o dia todo sem comer e a mistura das palavras com a fome a incomodava muito. Ouve-se um barulho forte, parecia um acidente de transito um pouco abaixo na rua. Todos saíram para ver ou que aconteceu, ou pelo menos para ficar perto, porque talvez ali ninguém soubesse realmente ver alguma coisa.

A menina que não gostava de natal não pensou não hesitou e não temeu. Correu dentro das casas e escreveu palavras após palavras nas roupas das pessoas.

“olhe para o lado, alguém espera pelo seu sorriso”
“tenha sempre nas mãos a capacidade de tocar um rosto de forma suave”
“para sonhar é preciso ter a coragem de dormir em paz”
“para viver é preciso ter a coragem de sonhar”
“um abraço pode construir uma história interminável”
“não resista a um sorriso, responda com um desejo”

E assim foi por vários minutos até que ela escutou a movimentação de pessoas que voltavam e correu para sua casa. Parou. Respirou fundo. Escreveu também nas roupas que estavam ali. Se deitou e se cobriu. Dormiu.

O sol na manhã do dia 25 não invadiu sua janela, pediu para entrar com carinho e a acordou de forma calma. Estava fraca e sentindo desanimada, afinal, não comera durante todo o dia anterior. Pensou em não levantar, em ficar ali até que o dia acabasse. A menina que não gostava de natal queria deixá-lo passar enquanto dormia. Mas seus olhos não a obedeceram e se abriram. O tempo não a escutou e deixou que o dia começasse lento esperando-a acordar. Então o dia a acordou e a convidou a sair. Ela disse não.

Virou para o lado, fechou as cortinas, cobriu o rosto com o travesseiro para abafar o som das brigas. Não ouviu brigas. Não ouviu silêncio. A fome era forte e ia acabar fazendo-lhe mal. Mas ela não queria se levantar. Era natal e ela não gostava do natal. O sol insistiu e convidou o vento a lhe ajudar. Juntos, um empurrou a cortina e o outro iluminou o quarto. Fizeram isto por várias vezes até que a menina se levantou. Sentou-se na cama com as mãos nos joelhos olhando o chão. Não havia mais palavras em sua cabeça. Elas não a incomodavam mais. Sentiu vontade de sair. Não tinha forças para levantar. Suas mãos tremiam um pouco, sua cabeça doía, sua boca estava seca. O barulho que vinha do lado de fora a incomodava. Não era o funk que vinha da rua. Estava mais perto. Muitas vozes ao mesmo tempo. Não parecia uma briga. O vento então entrou direto e acariciou o seu rosto por mais que ela não acreditasse em carinhos. Ela se levantou, lavou o rosto, pegou um copo de água e o barulho não sumia. Ela saiu.

A vila estava diferente, um ar mais leve, um som gostoso de vozes e música baixa. Estavam todos do lado de fora comemorando juntos. Todos vestidos com as roupas em que a menina escreveu durante a noite. Ela não conseguiu mais andar após ver toda aquela movimentação. Um a um eles se aproximaram dela e a abraçaram desejando feliz natal e dizendo obrigado. As pessoas de sua casa também estavam lá.

A menina teve a curiosidade de olhar para o lado e viu a caixinha de natal, ainda estava velha. Haviam apenas rabiscado por cima da frase. Mas algo parecia diferente; então ela se aproximou e viu que havia algo lá dentro. Abriu. Era um bilhete em um pedaço de papel.
“obrigado. Você não mudou as nossas vidas. Você a trouxe para nós”

A menina que não gostava de natal chorou. Chorou e sorriu. Era natal.

3 comentários:

  1. Trajano... muito obrigada por trazer esta reflexão! O Natal é para isso mesmo. tudo que fazemos influencia a todos o tempo todo. vamos fazer o bem.

    http://www.doepalavras.com.br (vamos ajudar o próximo! belo trabalho...)

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  2. Belíssimo!

    São palavras como as suas que conseguem mostrar o verdadeiro significado das coisas.

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  3. Caramba, digníssimo o texto.
    confesso que me fez pensar!
    o texto é muito lindo. PARABÉNS!

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