Muitas vezes ele disse que eu falava muito,
(que eu era muito ‘prosa’),
então, tome aí um poema em
prosa... meu pai foi um homem pequeno, baixinho mesmo, magrinho, do tipo que
dormia no meio do mato com animais perigosos, mas tinha medo de médico. Vai se
entender. Na verdade era fácil compreender seu pensar e agir, eram bem simples
e, até, limitados. Comia, bebia, dormia, vivia cada dia esperando o próximo e
se lembrando do anterior. Contava muitas histórias sobre o que passou e não
tinha muita criatividade para pensar o que viria. Me defenderia com a própria
vida se eu tivesse precisado, nunca precisei, nem ele de mim nesse sentido, por
sorte da vida nunca nos oferecemos essa proteção. Nem nunca nos oferecemos uma
canção apesar dele cantar calango e eu nunca ter aprendido. Sempre se preocupou
se eu estava ganhando dinheiro o suficiente e, quando eu não estava, nunca
contei. Seu senso de humor era, digamos, expansivo demais; fazia piada com tudo
e com todos, muitas vezes inoportunas... algumas pessoas vão dizer que, bem, eu
herdei isso. Não posso negar que gosto de uma piada, mas posso negar que sejam
inoportunas (mesmo que todos que conheço contestem isso). Um homem baixinho,
trabalhador, meio confuso, às vezes bruto e insensível, mas sempre presente
querendo dar presente se pudesse (inclusive fez questão de dar um presente à minha
mãe na sua última semana). Acho que ele parou de entender o que eu falava e
pensava, sei lá, quando eu tinha nove ou dez anos; se bem que ele não foi o
único a passar por isso. Tentou me ensinar a fazer balaios de taquara (são cestos
artesanais), mas eu nunca aprendi, minhas habilidades manuais são péssimas. Tentou
me ensinar a trabalhar na roça, com a terra, mas eu nunca tive interesse em
aprender. Nunca me ensinou a fazer o dever de casa, acho que não conseguiria,
mas eu nunca pedi, nem a ele nem a ninguém. Não éramos muito de pedir ajuda,
nisso acho que nos parecíamos bastante. Sempre teve orgulho do meu desempenho
nos estudos, e quando passei para a universidade pública contou para o bairro
inteiro, mesmo sem entender que curso eu fazia. Pode parecer que ele não poderia
me ensinar muitas coisas; em sua defesa, quase ninguém pode mesmo, eu estou
sempre correndo atrás de conhecimento e assumo que é difícil me acompanhar...
mas há quem acompanhe... ah corridas, o velhinho magrelo que ganhava corridas
morro acima aos sessenta anos. Nunca apostamos uma corrida, eu e ele, nunca
apostamos nada, não disputávamos. Eu o compreendia, e isso bastava. Ele me
aceitava sem compreender, e isso também bastava. Mas ele me ensinou uma coisa,
usava muito uma frase quando eu era criança: “a palavra de um rei não volta
atrás”. Bom, confesso que nunca fui a favor de reis ou absolutismos, sou feroz
em defesa da liberdade e da queda das hierarquias. Mas a ideia de assumir o
dito como compromisso quase sagrado me afeiçoava. Hoje, gostem ou não de mim,
as pessoas sabem que eu cumpro a minha palavra. Eu cresci dando muita
importância a isso. O que me faz não mentir, porque eu não preciso. Gosto de
dizer que cresci em meio a homens e mulheres fortes, filhos de um homem forte,
casado com uma mulher forte (ou, casado com a mulher bonita, como ele gostava
de dizer). Há quem diga que devamos aceitar as limitações de nossos pais, que
eles fazem por nós tudo o que podem fazer e nada mais. Eu vejo isso de uma
forma diferente, acho que, de fato, ele me ensinou uma única lição: mantenha a
sua palavra. Ele não pôde mais? Não vejo dessa forma, ele não precisou de mais.
Bastou, era tudo o que eu precisava. Sou o homem que sempre quis ser, demorei,
mas me tornei. Então, ele fez tudo o que precisava ser feito por mim (da parte
dele), não precisei de mais nada, não faltou nada. Uma lição simples que marca
a minha personalidade e faz parte de quem eu sou. E faz parte de tudo o que
criei, porque nunca voltei atrás quando disse que criaria. Mas o tempo e a vida
quiseram morder-lhe com força. Não sei o
que vieram cobrar e não tenho o direito de supor. Eu o vi ser derrubado com
força. Eu o vi superar os maiores medos e pedir ajuda. Eu o vi ver a vida indo
embora e sua preocupação era se cuidaríamos bem de nossa mãe. Eu o vi temer a
morte como se ela fosse o seu mais feroz inimigo e, mesmo assim, dizer: venha,
eu estou aqui. Ele preferiu batalhar a batalha que não poderia vencer ao invés
de se assumir fraco. Eu faria exatamente a mesma coisa; acho que não nos parecemos
só nas piadas. Você não perdeu a luta. A venceu por oitenta e três anos. Eu sou
quem eu deveria ser. Meus irmãos estavam ao seu lado, com dedicação. Sua despedida
estava cheia (e foram duas). Muitos se lembram do seu nome e se lembrarão por
muito tempo. Se foram as cantigas, os balaios, as piadas... mas o que importa
mesmo que é que tudo isso existiu. Agora é nosso turno, fica em paz e faça uma
boa viagem. Como eu te disse poucas horas antes da sua partida: vai, pode ficar
tranquilo, eu estou aqui... frase que te fez dormir. Agora durma o quanto
precisar até acordar para a próxima vida. Quando acordar verá um mundo melhor;
te dou a minha palavra.
Nem sei se isso é um poema ou uma
crônica,
que se dane,
termino em versos, chamo de poema...
Boa viagem Jose Carlos de
Oliveira (o Zito)... e obrigado por tudo.
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