Resolvi fazer um poema em prosa
para uma amiga de inimagináveis histórias e alma cheia de poesia. Os versos vão
ficar amontoados porque ela era tão acelerada que nos levava em suas histórias
e nos enchia com sua vida animada. Aquela que há muitos anos atrás viu um rapaz
sentado no chão, planejando um filme e ofereceu ajuda, porque ela era assim, e
daquele dia em diante ela fez parte da minha vida. Sua casa, seu ‘ilê okan’ –
não sei se estou usando corretamente a expressão – era de todos nós, nos sentíamos
aconchegados lá. O portão em que ela ficou pendurada e não levou os
figurinos... a casa onde ouvi inúmeras de suas histórias inacreditáveis. Porque
ela era assim, de aventuras diárias, e tudo acontecia com ela. Aquela linda mulher
negra, amiga de todos nós, que parecia vinte anos mais jovem. Aquele sorriso
que estava lá mesmo nos dias mais difíceis. Quantas vezes ela elogiou meus
roteiros (mesmo sem ter lido). A quantos amigos me apresentou, porque o que era
dela era de todos nós. Aquela mulher que deve ter sido a mãe mais doida do
mundo e também uma das melhores, e nos deixou na companhia de uma pessoa incrível
que é o seu filho. Suas roupas coloridas, seus batons extravagantes, sua risada
inesquecível. E ela ouvia música e cantava, e como amava isso. Desafinava às vezes,
mas não tinha a menor importância, porque era ela e ela era assim, nos importava
estar ao seu lado. Aquela que recebia todos os nossos amigos como se fossem
amigos dela e eles se tornavam. Ela fez o figurino da minha primeira tentativa
de filme, e eu não tinha dinheiro para pagar, ela fez assim mesmo. Ela fez o primeiro
figurino de minha escola de teatro e recebeu quase nada, porque tínhamos muito
pouco; porque ela era assim. Ela amava o Rio, amava seus amigos, seu filho, a
arte; amava viver e viveu intensamente todos os segundos de sua vida. Aquela
mulher que, quando já não estava conseguindo se levantar do sofá, por dores, me
recebeu em sua casa com um enorme sorriso e satisfação. O seu legado é o seu
filho, as memórias que deixa em nós, suas milhares de fotos sorrindo... e sua
legião de amigos de um tamanho imenso, e cabíamos todos em seu coração. E quase
todos já invadiram sua casa para um churrasco inesperado e ela nunca nos fez
voltar, porque ela era assim. Seu incenso pra se misturar com o cheiro do
cigarro... Soraia Valéria Ramos, ou melhor Suraya, como ela gostava de ser chamada.
Um dos maiores corações que já conheci em minha vida, um pedaço da vida de
todos nós... porque ela era assim, incrível. Ontem, 24 de julho de 2020 ela
teve que partir... o mundo está diferente, o horizonte está mais perto, os sons
estão mais devagar, as palavras mudaram o sabor; as homenagens são muitas e o
silêncio profundo. Cantemos em reverência à sua alegria, porque ela era assim,
parte da nossa alegria. Vá em paz amiga, obrigado por todos esses anos.
Um grande abraço de seu eterno
amigo,
Trajano Amaral.
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