terça-feira, 9 de setembro de 2025

Austero

Agendo uma receita de vida para daqui a pouco e esse tempo nunca se encaixa

porque assim de certo modo o que temos é o que passa

austero e solitário é o rastejar das gotas de água lá fora

o gato que corre no telhado frio sem medo de fazer barulho

o teclado silencioso que mesmo assim é ouvido por causa do toque bruto dos meus dedos

que se acostumaram a escrever como um guerreiro se acostuma a sangrar.

 

É como se eu tivesse medo das palavras

porque as palavras trazem muitas certezas que tenho em mim

e me fazem pensar que tudo é possível e talvez, só talvez,

o possível seja, de alguma forma, assustador aos meus olhos cansados

já que a solidão do gato me apavora: como ele pode correr?

Se seu caminho é só seu

é porque ele enxerga no escuro e não tem medo de cair

e talvez eu enxergue através da escuridão da existência e não tenha medo de cair

o que me leva a não correr e não pular.

 

Eu sei uma resposta que nunca respondi.

 

Talvez eu não queira responder sozinho

ou só não seja capaz

o que me afugenta da certeza é a eternidade pela qual não se pode pagar

e assim os dias se amedrontam escondidos atrás de uma noite infinita

que insiste em roubar-lhes o ar.

 

Sinto que sou uma pluma que esqueceu que pode cair sem se quebrar

e ao deslizar-se em um lugar só, sem se mover

percebe que tudo é um único ponto de pulsão de vida

e reconhece as mãos e mente que somem pontos que podem matar

e reconhece palavras e recursos que podem compartilhar a mente e as mãos

mas nada se partilha

porque um gato deitado na caixa

jamais correrá rompendo a escuridão...