Agendo uma receita de vida para daqui a pouco e esse tempo nunca se encaixa
porque assim de certo modo o que temos é o que passa
austero e solitário é o rastejar das gotas de água lá fora
o gato que corre no telhado frio sem medo de fazer barulho
o teclado silencioso que mesmo assim é ouvido por causa do
toque bruto dos meus dedos
que se acostumaram a escrever como um guerreiro se acostuma
a sangrar.
É como se eu tivesse medo das palavras
porque as palavras trazem muitas certezas que tenho em mim
e me fazem pensar que tudo é possível e talvez, só talvez,
o possível seja, de alguma forma, assustador aos meus olhos
cansados
já que a solidão do gato me apavora: como ele pode correr?
Se seu caminho é só seu
é porque ele enxerga no escuro e não tem medo de cair
e talvez eu enxergue através da escuridão da existência e
não tenha medo de cair
o que me leva a não correr e não pular.
Eu sei uma resposta que nunca respondi.
Talvez eu não queira responder sozinho
ou só não seja capaz
o que me afugenta da certeza é a eternidade pela qual não se
pode pagar
e assim os dias se amedrontam escondidos atrás de uma noite
infinita
que insiste em roubar-lhes o ar.
Sinto que sou uma pluma que esqueceu que pode cair sem se
quebrar
e ao deslizar-se em um lugar só, sem se mover
percebe que tudo é um único ponto de pulsão de vida
e reconhece as mãos e mente que somem pontos que podem matar
e reconhece palavras e recursos que podem compartilhar a mente
e as mãos
mas nada se partilha
porque um gato deitado na caixa
jamais correrá rompendo a escuridão...